A violência é tão fascinante
E nossas vidas são tão normais.
E nossas vidas são tão normais.
(Baader-
Meinhof Blues Legião Urbana)
O
ano de 2014 está acabando e junto dele vamos contabilizando saldos positivos e
negativos daquilo que vivemos ao longo destes quase 365 dias. Sem dúvida, o ano
em questão foi bastante desafiante, tendo em vista que muitas coisas aconteceram
e tivemos que tomar diversas decisões: particulares, de trabalho, família,
estudos, política... Sim, nas ruas, calçadas, na TV e no debate político um dos
temas favoritos das pessoas, mais comentados, ao lado da educação, saúde foi à
questão relativa à segurança pública, ou em termos mais “simples”, as
discussões sobre violência, sobretudo: a violência urbana. Bom, traçarei
algumas linhas acerca desse assunto tão “famoso” em nossos dias, por que não
dizer um dos assuntos da “moda”? Vejamos.
Defendi
há poucos meses em minha monografia[1] que
a
violência e o medo ocupam um lugar similar no medo social. De um lado, a
violência urbana tem se constituído como um dos grandes desafios a ser
enfrentados pelo mundo inteiro, e seus efeitos têm atingido de diversas formas
os vários grupos sociais. No caso particular do Brasil, ela tem se manifestado
de diferentes maneiras (assaltos, roubos, sequestros, homicídios, estupros,
etc.) e têm atingido de modo (in) direto diversos atores sociais. Segundo
Corrêa (2008) a violência urbana tem sido pauta na maioria dos noticiários em
diversos veículos de comunicação, sejam em telejornais, nos diários impressos,
no rádio, na internet e etc. Dessa forma, frequentemente somos alertados
através da mídia, e até mesmo nas conversas informais com amigos, vizinhos,
familiares sobre histórias relativas a crimes que tem se manifestado em
diversos setores da sociedade e que tem preocupado não só a população, mas
também diversos estudiosos (ADORNO, 1998; MARTUCCELLI, 1999; CALDEIRA, 2000;
SOUZA, 2008) de diversas áreas que têm se esforçado para compreender as
múltiplas facetas desse fenômeno. Por outro lado, ao mencionar a violência
urbana como um obstáculo a ser enfrentado, precisamos nos esforçar para entender
a sua relação com outra categoria importante: o medo.
De
acordo com Bauman (2008) o medo é bem mais assustador quando ele é difundido
sem endereço nem motivos claros, e se espalha por todas as atividades
existenciais. A ideia de medo foi se transformando ao longo do tempo. Se antes
o medo advinha principalmente dos ataques da natureza, com o passar do tempo
ele foi se constituindo através das relações sociais, em outras palavras, do
próprio convívio social (CORRÊA, 2008).
Paradoxalmente
nossa sociedade é mais (in) segura em termos de aparatos protetores, segurança
particular, equipamentos de segurança, espaços cercados, fechados, controlados
24 horas etc. Ao lado dessa indústria da segurança particular, temos percebido
que a adoção de um estilo de vida em condomínios residenciais fechados tem
contribuído para fragmentar cada vez mais o espaço urbano, e a violência e o
medo têm contribuído para novas formas de sociabilidade, e, além disso, como
colocou Souza (2008) essa autossegregação é um dos componentes que tem
fragmentado o tecido sócio-político-espacial com a expansão dos condomínios, e
isto representa não uma solução, mas uma fuga para o enfrentamento da violência
e do medo. Além disso, sob a justificativa do medo e da violência (CALDEIRA,
2000), alguns grupos sociais têm “resolvido” tal questão circulando cada vez
menos em espaços públicos. E isso, talvez seja um dos motivos que tem ajudado a
promover estigmas contra aqueles que são considerados “suspeitos” por
circularem com mais frequência nas ruas, nas praças, e que, ao mesmo tempo tais
“soluções individualistas de proteção” são formas de manter hierarquias de
classes sociais, impondo que “cada um fique no seu lugar”.
Os anúncios
publicitários de condomínios residenciais, por sua vez, procuram se “alimentar”
desses relatos diários da mídia sobre crimes, violência e o medo atrelado a
eles, trazendo em suas ilustrações, cores e frases de efeito a “solução” para
os problemas da violência em diversas cidades brasileiras, vendendo a ideia de
que morar nesses espaços constituem a melhor forma de viver tranquilo e seguro,
procurando criar um “mundo ideal” ao buscar através de estratégias publicitárias
removerem os defeitos do “mundo real”, convencendo os futuros moradores de seus
domínios.
Sobre as
imagens construídas em relação à violência, cada pessoa expressa diversos
sentimentos sobre ela. Em alguns casos, existe uma relação direta com a
experiência de ter sido vítimas de assaltos em algum momento da vida. Em outros
casos, suas percepções estão relacionadas, mesmo que implicitamente, às
imagens, às notícias veiculadas nas mídias, ou ainda com “casos ocorridos com
parentes próximos e amigos ancorados em outros territórios” (SPOSITO E GÓES,
2013, p.51). Mas não podemos nos
esquecer, que, a sensação de insegurança em virtude da violência pode até chocar,
mas há quem lucre (e muito!) com a sua permanência. De um lado, a violência é
representada como um fator constante e presente no dia a dia dos indivíduos,
pois há quem diga que “a cidade, o bairro, o mundo de hoje em que vivemos não
oferece segurança nenhuma”. Do outro, as notícias veiculadas sobre violência,
sob o aspecto da criminalidade, têm rendido boas manchetes, uma ampla audiência
e gerado bons negócios. Com efeito, as empresas de segurança privada também tem
se beneficiado com a venda de serviços e equipamentos de proteção destinados a
bancos, indústrias, shopping-centers
e até nos condomínios residenciais para impedir que “intrusos” adentrem seus
espaços agora fortificados.
A violência
também se apresenta como uma categoria acusatória, que reforça a todo instante
que o perigo vem sempre do outro: do entregador de encomendas; dos mais jovens;
dos usuários de drogas; dos pedintes; dos “delinquentes” e “maus elementos”. É
associada também à pobreza, à “falta de educação das pessoas”, ao
“descompromisso” da esfera pública, de famílias “desestruturadas”, mas de forma
alguma mencionam a desigualdade social promovida pela construção de mecanismos
de defesa, fomentando o isolamento, o controle e a separação (CALDEIRA, 2010,
p. 98). Há quem reforce que é preciso a presença da polícia nas ruas para
inibir a ação de “criminosos” ou para intimidá-los, mas que os policiais sejam
pessoas qualificadas. Outros sugerem a redução da maioridade penal para 16
anos; prisão perpétua; um código penal mais “efetivo” dentre outras “soluções”.
Acontece que a luta pelo direito de uma cidade mais inclusiva a todos é
colocada de lado, priorizando medidas “individualistas” de proteção que
funcionam como uma fuga de problemas coletivos, contribuindo para uma cidade
dividida, fragmentada, segregada, onde o medo e a insegurança são constantes.
Vivemos
em uma sociedade individualizada, que “caracteriza-se pelo afrouxamento dos
laços sociais, esse alicerce da ação solidária” (BAUMAN, 2008, p. 33). Por fim,
enquanto não assumirmos que o problema é coletivo, continuaremos cercando
nossas cidades e construindo nossos muros, com a falsa ilusão de que estaremos
seguros, fingindo que estamos protegidos de um perigo que nós mesmos
produzimos.
Gláucia
Santos de Maria
[1] (DE MARIA, Gláucia Santos.
Moradas de medo e esperança: Violência urbana, medo, mídia e estratégias de
proteção dos moradores de condomínios em Campina Grande. Monografia em Ciências
Sociais. UACS-UFCG, 2014).